21 abril 2014

O Sal - Parte 7



Vida dos Salineiros

Os trabalhadores das marinhas do salgado de Alcochete designados por salineiros, normalmente, iniciavam a sua actividade nas marinhas muito novos por volta dos 9/10 anos ou depois de concluírem a escola primária, aos 12 anos. Muitos não iam à escola e logo que se pressentia alguma robustez física, mesmo ainda crianças eram iniciados nos trabalhos das marinhas. Aos nove anos a sua função era de apoio aos trabalhadores, transportando a água para servir os que trabalhavam debaixo do sol escaldante – eram conhecidos pelos aguadeiros. 

Alguns iniciaram a sua vida nas marinhas, aos 6 anos, acompanhando os seus pais e desempenhando a mesma função de aguadeiro. Assim nos relatou um salineiro que aos 6 anos começou a acompanhar o pai, mestre da marinha, como aguadeiro. Nas marinhas executou vários tipos de trabalhos, chegou a ser “punhos reais”. Trabalhou em várias marinhas até ao momento em que deixou o trabalho das marinhas para ir trabalhar para a Firestone (fábrica de pneus), nos anos 60. No entanto, nunca se esqueceu das marinhas e depois de se reformar voltou a dedicar-se à salicultura, ajudando nos trabalhos de limpeza e, na altura da colheita, quando era necessário bastante mão de obra para “rer” o sal e tira-lo das barachas para a serra. (informante: Torcato Guerra).

Aqueles que iam à escola começavam a trabalhar quando concluíam a 4ª classe. Também nas marinhas iniciavam a sua actividade, deixavam de ser crianças muito cedo, quase desconhecendo o significado de brincar. Depois de um dia duro de trabalho, não havia muito tempo para a brincadeira e o cansaço era grande.

 Assim aconteceu com o Sr. Manuel Nicolau que aos 13 anos e feito o exame da 4ª classe, começou a trabalhar nas marinhas. A primeira marinha onde trabalhou foi na Gema – Cova pertencente a D. Mariana Gonçalves, que em 1952 passa a integrar as salinas da Fundação João Gonçalves Júnior. Sempre trabalhou nestas marinhas. ( informante: Sr. Manuel Nicolau)
O Sr. Manuel Nicolau aprendeu a “arte de salineiro” com o pai, actividade que mantém até hoje, aos 85 anos. Conhece bem as marinhas e os processos de feitura do sal. Nas marinhas executou todo o tipo de trabalhos. A sua sensibilidade e capacidade de observação aliada ao seu porte robusto, tornou-o marnoteiro, o mestre das marinhas de D. Mariana Gonçalves, função que continua a desempenhar na Marinha do Brito. Enquanto Mestre da marinha, vai ensinando aos mais novos que trabalham sob as suas ordens a “arte de salineiro”, transmitindo o seu saber obtido pela experiência acumulada durante 70 anos, para que se mantenha viva uma arte que ameaça extinguir-se. Amanhar as marinhas é uma tarefa que só alguns sabem fazer, por isso é preciso em primeiro lugar ensinar a observar, para depois poder estar apto a executar todos os trabalhos, com a perícia e destreza necessária até à feitura do sal: Limpeza das marinhas, circulação da água até às caldeiras de moirar e depois para os talhos, até à obtenção dos cristais de sal. Finalmente a tirada do sal e o carrego até à Serra. A feitura da Serra também não é tarefa fácil, é preciso saber como se vai colocando o sal por camadas, uma vez que as camadas que se vão sobrepondo até construir a serra são feitas de diferentes tipos de sal.

 Conforme descreve o Sr. Manuel Nicolau, a maioria das famílias de Alcochete viviam da produção do sal, como assalariados. A aprendizagem fazia-se em tenra idade e era transmitida de pais para filhos, pois já os seus bisavôs, avós e pais tinham aprendido a “arte de salineiro”.

 Na primavera iniciavam-se os trabalhos de limpeza das marinhas e no verão a actividade intensificava-se com a safra do sal, exigindo grande quantidade de mão-de-obra. No Inverno o salineiro dedicava-se à agricultura e ao “descarrego” do carvão no Porto de Lisboa, actividade que o Sr. Manuel Nicolau também exerceu.

Conforme refere em 1950, José Estevam, “O trabalhador de Alcochete entrega-se no verão ao serviço das marinhas e, pelo ano fora, na descarga do carvão. Antes da descarga empregava-se, além do serviço do sal e dos barcos, a cortar mato na charneca (…). Sem queda para o negócio ou para a indústria, que requer espírito de poupança, sabendo ou não ler e escrever, otrabalhador nada mais faz que tratar do sal e acarretar carvão, mesteres em que labuta desde menino e moço, sem embargo de se adaptar a outro serviço, pela faculdade mui apreciável de assimilação ou apropriação a qualquer labor.”

 O marnoteiro (Sr. Manuel Nicolau) refere ainda que, a vida não era fácil e o trabalho nas marinhas era muito duro. Daí que durante a safra os trabalhadores procuravam animar o trabalho e o carrego do sal para a Serra com “ O conto do sal”, que consistia em entoar em voz alta em forma de pregão o número de canastra que se erguia para a cabeça do carregador. Este cantava então: “esta é a primeira”, “aí vão duas”, “aí vão três”, “aí vão quatro” e assim sucessivamente até ao número 14 e entoavam “a véspera do moio!”, pois as 15 canastras perfaziam o moio. Depois iniciavam novamente o conto.
 Refere o Sr. Nicolau notando-se alguma nostalgia no seu timbre de voz: “ estes eram tempos em que dava gosto olhar para as marinhas todas cobertas de sal até perder de vista”.

 Ainda nos finais dos anos 80 era normal os jovens durante as férias escolares no verão irem trabalhar nas  marinhas, ganhando um pequeno salário que lhes permitia comprar alguns objectos pessoais.
Os trabalhadores da marinhas encontraram uma forma de ocupar o seu tempo nas horas de descanso - descobrindo uma arte que se revelou na construção de miniaturas de barcos, de formas para pães de sal. Mas evidencia a sua capacidade para aproveitar os instrumentos já gastos e dar-lhe formas ao seu gosto, associando a funcionalidade à arte. 
Os barquinhos eram feitos pelos “criados das marinhas” que cheios de paciência enchiam a “tábua superior de desenhos , de números, de iniciais, de nomes, de datas, V.V.Fx:, B. do J.S., 380, 499, 314, Carlos roque, 16 de Julho de 1910; uma casa desenhada a traço simples; barcos de duas velas, como a fragata do Tejo, duas letras, L.P., entre figuras de sino-saimão; toda uma arte infantil de ganhões, analfabetos, que aproveitavam o descanso da sesta, dando que fazer à navalha  que acabou de recortar o pão e o queijo da refeição frugal.”

Os mestre das marinhas revelam uma arte mais sofisticada, dedicando-se à construção de pequenas caixinhas todas trabalhadas “formas de sal fino, em que se manifesta a arte do sal, popular especial, exercida pelos marnoteiros e por algum criado de mais alta graduação.
È costume velho, o mestre aproveitar o primeiro sal fino que recolhe para fazer os pãezinhos em formas de paralelepípedos, os quais depois oferece seja aos patrões, seja ás pessoas por quem tem amizade ou consideração. Este sal fino, colhe-se nas cabeças dos caldeirões de moirar e nas dos talhos”. (…) Um dia o mestre imaginou que, lavrando em covos as réguas laterais, ficariam figuras em relevo sobre as paredes do pão de sal, adornando-o, e, sobre pedaços de azinho tirados aos rodos velhos, foi abrindo à navalha tudo quanto a sua limitada fantasia lhe inspirava.”
Por isso, segundo Mário de Sá, as caixas são todas diferentes na decoração, cada caixa trata um assunto, umas apresentam motivos naturalistas, alusivos à terra e à água, motivos sagrados e profanos ( cabeças de touros, flores e plantas de vários géneros, caranguejos, ferros dos lavradores de Alcochete de casa agrícolas, como o ferro dos condes de Cabral; do lavrador Joaquim Pedro de Oliveira, da Sociedade Agrícola e produtora de sal, da Casa do Pancas e dos Irmãos de Oliveira)”.
 “Assim, começou sabe-se lá quando, a arte no sal, uma arte popular, ingénua, sem preocupações, influenciada por um restrito campo de observação, o de salineiro cuja vida se passa mais junto á água dos caldeirões, do que no povoado, com imagens tiradas da Terra  e da água, dos moinhos, dos barcos, dos animais, das plantas e dos objectos por vezes estranhos.”

Fonte: Maria Dulce de Oliveira Marques – Dissertação de Mestrado –“O Salgado de Alcochete”


Foto: Junta Freguesia de Alcochete 

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