Vida dos Salineiros
Os trabalhadores das marinhas do
salgado de Alcochete designados por salineiros, normalmente, iniciavam a sua
actividade nas marinhas muito novos por volta dos 9/10 anos ou depois de
concluírem a escola primária, aos 12 anos. Muitos não iam à escola e logo que
se pressentia alguma robustez física, mesmo ainda crianças eram iniciados nos
trabalhos das marinhas. Aos nove anos a sua função era de apoio aos
trabalhadores, transportando a água para servir os que trabalhavam debaixo do
sol escaldante – eram conhecidos pelos aguadeiros.
Alguns iniciaram a sua vida nas
marinhas, aos 6 anos, acompanhando os seus pais e desempenhando a mesma função
de aguadeiro. Assim nos relatou um salineiro que aos 6 anos começou a
acompanhar o pai, mestre da marinha, como aguadeiro. Nas marinhas executou
vários tipos de trabalhos, chegou a ser “punhos reais”. Trabalhou em várias
marinhas até ao momento em que deixou o trabalho das marinhas para ir trabalhar
para a Firestone (fábrica de pneus), nos anos 60. No entanto, nunca se esqueceu
das marinhas e depois de se reformar voltou a dedicar-se à salicultura, ajudando
nos trabalhos de limpeza e, na altura da colheita, quando era necessário
bastante mão de obra para “rer” o sal e tira-lo das barachas para a serra.
(informante: Torcato Guerra).
Aqueles que iam à escola
começavam a trabalhar quando concluíam a 4ª classe. Também nas marinhas iniciavam
a sua actividade, deixavam de ser crianças muito cedo, quase desconhecendo o
significado de brincar. Depois de um dia duro de trabalho, não havia muito
tempo para a brincadeira e o cansaço era grande.
Assim aconteceu com o Sr. Manuel Nicolau que
aos 13 anos e feito o exame da 4ª classe, começou a trabalhar nas marinhas. A
primeira marinha onde trabalhou foi na Gema – Cova pertencente a D. Mariana Gonçalves,
que em 1952 passa a integrar as salinas da Fundação João Gonçalves Júnior.
Sempre trabalhou nestas marinhas. ( informante: Sr. Manuel Nicolau)
O Sr. Manuel Nicolau aprendeu a
“arte de salineiro” com o pai, actividade que mantém até hoje, aos 85 anos.
Conhece bem as marinhas e os processos de feitura do sal. Nas marinhas executou
todo o tipo de trabalhos. A sua sensibilidade e capacidade de observação aliada
ao seu porte robusto, tornou-o marnoteiro, o mestre das marinhas de D. Mariana
Gonçalves, função que continua a desempenhar na Marinha do Brito. Enquanto
Mestre da marinha, vai ensinando aos mais novos que trabalham sob as suas ordens
a “arte de salineiro”, transmitindo o seu saber obtido pela experiência
acumulada durante 70 anos, para que se mantenha viva uma arte que ameaça
extinguir-se. Amanhar as marinhas é uma tarefa que só alguns sabem fazer, por
isso é preciso em primeiro lugar ensinar a observar, para depois poder estar
apto a executar todos os trabalhos, com a perícia e destreza necessária até à
feitura do sal: Limpeza das marinhas, circulação da água até às caldeiras de
moirar e depois para os talhos, até à obtenção dos cristais de sal. Finalmente
a tirada do sal e o carrego até à Serra. A feitura da Serra também não é tarefa
fácil, é preciso saber como se vai colocando o sal por camadas, uma vez que as
camadas que se vão sobrepondo até construir a serra são feitas de diferentes
tipos de sal.
Conforme descreve o Sr. Manuel Nicolau, a
maioria das famílias de Alcochete viviam da produção do sal, como assalariados.
A aprendizagem fazia-se em tenra idade e era transmitida de pais para filhos,
pois já os seus bisavôs, avós e pais tinham aprendido a “arte de salineiro”.
Na primavera iniciavam-se os trabalhos de
limpeza das marinhas e no verão a actividade intensificava-se com a safra do
sal, exigindo grande quantidade de mão-de-obra. No Inverno o salineiro
dedicava-se à agricultura e ao “descarrego” do carvão no Porto de Lisboa,
actividade que o Sr. Manuel Nicolau também exerceu.
Conforme refere em 1950, José
Estevam, “O trabalhador de Alcochete
entrega-se no verão ao serviço das marinhas e, pelo ano fora, na descarga do
carvão. Antes da descarga empregava-se, além do serviço do sal e dos barcos, a
cortar mato na charneca (…). Sem queda para o negócio ou para a indústria, que
requer espírito de poupança, sabendo ou não ler e escrever, otrabalhador nada
mais faz que tratar do sal e acarretar carvão, mesteres em que labuta desde
menino e moço, sem embargo de se adaptar a outro serviço, pela faculdade mui apreciável
de assimilação ou apropriação a qualquer labor.”
O marnoteiro (Sr. Manuel Nicolau) refere ainda
que, a vida não era fácil e o trabalho nas marinhas era muito duro. Daí que
durante a safra os trabalhadores procuravam animar o trabalho e o carrego do
sal para a Serra com “ O conto do sal”, que consistia em entoar em voz alta em
forma de pregão o número de canastra que se erguia para a cabeça do carregador.
Este cantava então: “esta é a primeira”, “aí vão duas”, “aí vão três”, “aí vão
quatro” e assim sucessivamente até ao número 14 e entoavam “a véspera do moio!”,
pois as 15 canastras perfaziam o moio. Depois iniciavam novamente o conto.
Refere o Sr. Nicolau notando-se alguma
nostalgia no seu timbre de voz: “ estes eram tempos em que dava gosto olhar
para as marinhas todas cobertas de sal até perder de vista”.
Ainda nos finais dos anos 80 era normal os
jovens durante as férias escolares no verão irem trabalhar nas marinhas, ganhando um pequeno salário que
lhes permitia comprar alguns objectos pessoais.
Os trabalhadores da marinhas
encontraram uma forma de ocupar o seu tempo nas horas de descanso - descobrindo
uma arte que se revelou na construção de miniaturas de barcos, de formas para
pães de sal. Mas evidencia a sua capacidade para aproveitar os instrumentos já
gastos e dar-lhe formas ao seu gosto, associando a funcionalidade à arte.
Os
barquinhos eram feitos pelos “criados das marinhas” que cheios de paciência
enchiam a “tábua superior de desenhos ,
de números, de iniciais, de nomes, de datas, V.V.Fx:, B. do J.S., 380, 499,
314, Carlos roque, 16 de Julho de 1910; uma casa desenhada a traço simples;
barcos de duas velas, como a fragata do Tejo, duas letras, L.P., entre figuras
de sino-saimão; toda uma arte infantil de ganhões, analfabetos, que
aproveitavam o descanso da sesta, dando que fazer à navalha que acabou de recortar o pão e o queijo da
refeição frugal.”
Os mestre das marinhas revelam uma
arte mais sofisticada, dedicando-se à construção de pequenas caixinhas todas
trabalhadas “formas de sal fino, em que
se manifesta a arte do sal, popular especial, exercida pelos marnoteiros e por
algum criado de mais alta graduação.
È costume velho, o mestre aproveitar o primeiro sal fino que recolhe
para fazer os pãezinhos em formas de paralelepípedos, os quais depois oferece
seja aos patrões, seja ás pessoas por quem tem amizade ou consideração. Este
sal fino, colhe-se nas cabeças dos caldeirões de moirar e nas dos talhos”. (…) Um
dia o mestre imaginou que, lavrando em covos as réguas laterais, ficariam
figuras em relevo sobre as paredes do pão de sal, adornando-o, e, sobre pedaços
de azinho tirados aos rodos velhos, foi abrindo à navalha tudo quanto a sua
limitada fantasia lhe inspirava.”
Por isso, segundo Mário de Sá, as caixas são todas diferentes na
decoração, cada caixa trata um assunto, umas apresentam motivos naturalistas, alusivos
à terra e à água, motivos sagrados e profanos ( cabeças de touros, flores e
plantas de vários géneros, caranguejos, ferros dos lavradores de Alcochete de
casa agrícolas, como o ferro dos condes de Cabral; do lavrador Joaquim Pedro de
Oliveira, da Sociedade Agrícola e produtora de sal, da Casa do Pancas e dos
Irmãos de Oliveira)”.
“Assim, começou sabe-se lá
quando, a arte no sal, uma arte popular, ingénua, sem preocupações, influenciada
por um restrito campo de observação, o de salineiro cuja vida se passa mais
junto á água dos caldeirões, do que no povoado, com imagens tiradas da
Terra e da água, dos moinhos, dos
barcos, dos animais, das plantas e dos objectos por vezes estranhos.”
Fonte: Maria Dulce de Oliveira Marques –
Dissertação de Mestrado –“O Salgado de Alcochete”
Sem comentários:
Enviar um comentário