Em 1954, o salgado de Alcochete
era composto por 61 marinhas de
cabeceira e 33 de corredores. Na região de Alcochete-Samouco predominavam as
marinhas de cabeceiras, apresentando 51 marinhas deste tipo e 16 de corredores;
no rio das Enguias existiam 10 marinhas de cabeceiras e 15 de corredores e na
região de Vasa-Sacos as duas marinhas aí existentes são também de
corredores.
Assim, dentro do mesmo salgado existem
diferentes tipologias de marinhas, que por isso vão determinar os processos da
feitura do sal, o tipo de sal que se produz e a qualidade do mesmo. A própria
actividade dos salineiros é marcada pelo tipo de marinha em que está a
trabalhar, embora no essencial estejam sujeitos aos mesmos princípios.
As marinhas grandes são as de
corredores, embora também se encontrem marinhas pequenas deste tipo.
As marinhas de cabeceira são geralmente mais
pequenas do que as outras, apresentando um traçado irregular e a maioria não
ultrapassa as 500 toneladas de produção. Esta tipologia corresponderá à concepção
das marinhas mais antigas de Alcochete, o que lhes confere, pelo seu traçado,
uma especificidade relativamente aos outros salgados, nomeadamente da região de
Lisboa. Da análise da documentação tudo indica
que as marinhas de cabeceira terão sido as primeiras a construírem-se em
Alcochete, uma vez que Lacerda lobo, na sua obra Marinhas de Portugal refere
que “as marinhas que ficam a sul do Tejo situadas nos extremos de Alcochete,
Aldeia Galega, Moita e Alhos Vedros, todas têm 5 ordens de reservatórios (exceptuando
as da ribeira do batel) chamados pelos marnoteiros, viveiros, caldeirões, caldeiras,
cabeceiras e talhos. São formadas por um terreno ordinariamente apertado o que influi
muito na bondade das marinhas, sendo melhores aquelas, que têm endurecido o
fundo dos talhos onde se faz a cristalização.”
Parece que este tipo de solo, a
que se refere é o casco ou traste, que em 1877 Alcoforado, refere nos seus
trabalhos sobre as características do solo das marinhas dos vários salgados.
Porém, Lacerda Lobo, nada adianta sobre esta matéria.
Quanto à tipologia da marinha a
ordem e número de reservatórios, bem como a designação, integra-se no essencial
na tipologia das marinhas de “cabeceira”.
Amanho
Em Março/Abril, iniciam-se os trabalhos de preparação da nova safra:
trabalhos de limpezada
marinha, escoam-se as águas e
fazem-se as reparações (consertos) dos possíveis estragos causados pelo
Inverno.
A limpeza dos vários compartimentos é feita
segundo a ordem em que se dispõe na marinha, até chegar aos talhos, conforme
ser referiu a propósito da descrição da marinha.
Desta forma, primeiro procede-se à limpeza do
viveiro, feita com pás e rodos e cortam-se as moitas dos respectivos muros. Em
princípios de Abril mete-se água no viveiro.
A reserva também é limpa da vegetação e lamas,
corrigindo-se a superfície. Os trabalhos são feitos com o rodo.
Seguidamente faz-se a limpeza dos terceiros
caldeirões e contra-caldeirões, depois de passar a água para a reserva e
caldeirões. As barachas são também arranjadas utilizando três tipos de pás- Pá
de pejo, pá de valar e pá ferrada.
Quando já estão limpos a água regressa aqueles compartimentos. Finalmente faz-se a limpeza dos caldeirões.
Estes, depois de limpos ficam em seco, dois a três dias, para “curar” sendo
novamente cheios com a água dos terceiros e contra caldeirões, com uma
concentração de 10 a 16º Bé
Depois de executados todos estes trabalhos,
procede-se ao “descarrego” da marinha, sendo a água de alagamento, com uma
concentração de 14 a 17º Bé, distribuída por todos os compartimentos da marinha
que foram cuidadosamente limpos. Esta
operação é feita com recurso ao bombeiro ou engenho. Finalmente faz-se a
limpeza dos talhos, que estavam alagados, assim como o seu nivelamento. Estas
operações, têm a designação de “deitas”, no salgado de Alcochete.
Estes trabalhos “deitas” devem ser feitos com
muito cuidado de modo a não rasgar o feltro da talharia (ou cozimento) e deve
aproveitar-se a água salgada que durante o Inverno cobriu a marinha. No
entanto, por vezes podem acontecer acidentes durante as deitas, tais como romper
o feltro, com o rodo ou a constipação das marinhas. Ou seja quando a água de alagamento,
atinge uma concentração muito elevada, há necessidade de a diluir. Se a
diluição for feita bruscamente e com “água muito fresca” o cozimento pode
sofrer danos irreparáveis.
Terminados os trabalhos de arranjo e
preparação dos talhos, deixam-se expostos ao sol durante dois a três dias, para
melhor consolidação e para aquecimento (nas marinhas sem cozimento).
No final das “deitas” a água da marinha possui
já uma concentração elevada, podendo obter-se facilmente nos caldeirões ou
cabeceiras (conforme o tipo de marinha) uma concentração de 25º Bé.
Feitura do Sal
Após os trabalhos anteriormente
descritos, cuja finalidade é deixar a marinha completamente limpa e depois da
água ter adquirido o grau de concentração necessário nos diversos reservatórios
evaporatórios, o marnoteiro inicia as operações de feitura do sal:
Primeiro moiram-se os talhos, que significa
meter-lhes água das caldeiras de moirar. Ou seja, depois de secos e aquecidos,
os talhos recebem a solução (água concentrada) a 25-26º Bé, das caldeiras de
moirar, operação que se repete de dois em dois dias. A quantidade de água que
entra nos talhos, deve ser suficiente para cobrir as “cabeças” (partes mais
altas) dos talhos ficando com uma altura de solução de 2 a 4 cm. A cristalização
começa rapidamente.
Por sua vez os caldeirões (caldeiras nas
marinhas pequenas), ou cabeceiras ficam com pouca água ou seja, ficam “de
rastos” e estando já muito salgados, salgam ainda mais, pois ficamquase em seco
durante um dia e expostos ao sol.
Por isso, recebem mais água
concentrada a 18-20º Bé dos contra-caldeirões, atingindo rapidamente os 25º Bé,
dado que já estavam salgados e aquecidos e a altura da água é muito pequena.
Entretanto, daí a 3-5 dias as cabeças dos
talhos, cobertas de sal, começam a descobrir, sendo necessários dar entrada de
mais água, ficando novamente com uma altura de 3 a 5 cm. O marnoteiro quando
observa o abatimento do talho, sabe que está na altura de dar entrada de mais
água nos talhos. Para calcular a concentração de água o marnoteiro recorre ao pesa-sais.
Até 1866 os marroteiros de Lisboa, “serviam-se de um ovo de galinha, como de
aerómetro, para conhecer o estado de saturação das moiras; porque o peso
específico daquele corpo faz uma pequena diferença para menor, comparando com a
água do mar a 25 graus. Logo que o ovo boiava à tona do liquido, tinha
adquirido a precisa graduação para entrar na talharia.”
Refere o mesmo autor que “a partir de 1866 o
Sr. Estevão António de Oliveira, abastado e inteligente proprietário das
marinhas de Alcochete, começou a usar o aerómetro; e hoje este instrumento utilíssimo
é conhecido e adoptado geralmente pelos marroteiros da capital”.
Se o tempo for favorável, ou seja, tempo
quente com ventos brandos dos quadrantes Norte e Oeste, a entrada da solução
nos talhos, faz-se de dois em dois dias. A solução do descarrego, vai sendo
consumida e a água do viveiro vai avançando, novamente até chegar aos talhos. A
concentração nos conta-caldeiros e caldeiras vai diminuindo e passados 15 a 20
dias, não ultrapassa os 15º Bé. A água entra nos caldeirões ou cabeceiras com
esta concentração, atingindo aí 25º Bé.
Passados 25 a 30 dias, a altura
de sal nos talhos é de 2 a 3 cm, iniciando-se então a colheita do sal.
Alcoforado em 1877, refere que”
passados 20 a 30 dias, isto é, no princípios de Agosto, está formada, madura, a
primeira camada, que tem ordinariamente 0,06 m de espessura ( 6 cm). Esta
primeira colheita chama-se raza, é rapada (tirada) com rodos, exactamente como
em Setúbal, tendo-lhe previamente quebrado o lavor (crosta salina)”.
A rapação
No início de Agosto quando os
talhos apresentam já uma altura de 2 a 3 cm de sal, inicia-se a colheita do
sal, sem escoar as águas mães. A colheita, designada rapação, é feita com
rodos, sendo feita com a maior ou menor facilidade, consoante a natureza do
fundo do talho e a altura da camada de sal. A rapação inclui a lavagem nas
águas mãe, excepto se a marinha produz sal apenas para a indústria. É de
apreciar a perícia dos trabalhadores durante a rapação.
Durante a rapação o sal é puxado para os lados
dos talhos – operação de atravincar.
Escorre durante algum tempo e é depois
arrastado para cima das barachas, onde fica durante dois ou mais dias a secar,
sendo depois transportado em canastras para as eiras.
Diz Alcoforado, “depois de escorrido o sal
algum tempo sobre as barachas, é levado para as eiras, onde se acumula em
grandes montes, a que os marroteiros do Lavradio, Alhos Vedros e Moita, dão a
forma original de uma lancha voltada de quilha para o ar.”
O número de rapação em cada safra varia entre
3 a 6, consoante o ano e se o tempo favorável permite o prolongamento da
colheita durante o mês de Setembro.
Anteriormenteriormente a “tirada” de sal das
barachas para as eiras era uma tarefa muito violenta, por isso deveria ser
feito por homens de força.
À medida que a safra vai
avançando as concentrações são cada vez menores. A água fornecida pelos
caldeirões ou cabeceiras, consoante o tipo de marinha, é cada vez menos concentrada
e por isso a camada de sal vai desaparecendo. Por outro lado, as noites são
cada vez maiores aumentando o período de arrefecimento e logo diminui a
concentração da água.
Por isso, chega-se a moirar a
17-18 º Bé, sendo vantajoso para os talhos, uma vez que equilibra a solução
muito carregada de sais de magnésio. O sal continua a depositar-se mas já sob a
forma de pequenos sais e escamas.
O bom funcionamento dos talhos começa a ser
perturbado devido aos centros de cristalização que se vão formando à superfície
sob a forma de película. Procede-se então à destruição dessa película com o
rodo, a que o marnoteiro chama “apagar labor”
A Tirada do Sal
Depois do sal fabricado era
necessário transportá-lo até à serra, que se fazia com as canastra de 56 litros
à cabeça, a esta operação designa-se “tirada do sal”, da marinha até à serra ou
monte.
O sal era colocado em cima das
barachas (operação de embarachar) e depois os carregadores transportavam em
canastras à cabeça para a Serra. As canastras eram enchidas pelo amoiador,
também designado “punhos reais”. Na década de 60 começou a utilizar-se uns carrinhos
de mão para transportar o sal.
Da serra o sal é levado para dentro do barco,
é a designada “carregação”; finalmente o transporte do sal até ao porão do
navio (vapor) de Alcochete até Lisboa.
Em meados do século XX, as marinhas que tinham
acesso por terra, o sal começou a ser transportado por camionetas, nas outras
por barcos. Há marinhas cujo acesso é dificultado, devido ao assoreamento dos
rios que as servem. Segundo Charles Lepierre, em 1933, da serra o sal ia em
camionetas até ao barco em Alcochete, ou directamente da marinha para o barco, colocado
no barco com auxílio de pranchas; isto no caso das marinhas de fácil acesso pelo
rio. Segundo o mesmo autor, os
produtores da região de Alcochete consideram a salicultura uma indústria pobre,
porque as despesas desde a produção ao transporte são muito elevadas.
Conservação do Sal
O sal é conservado nas eiras em
“serras”, formadas pelo sal das várias rasas. A serra tem uma forma prismática.
Refere Alcoforado que tem a forma de uma quilha voltada e segundo Charles Lepierre
“ou mais simplesmente em forma de telhado de quatro águas”
Para construir a serra começa-se
pela primeira rasa tirada no início de Agosto. A 2º rasa é colocada contra a
primeira, de cada lado e à mesma altura. Finalmente a 3ª rasa aplica-se também
de cada lado contra a 2ª.
O operário que faz a Serra é o serreiro.
Depois de todo o sal colocado na serra e de
apajar as serras, são cobertas com junco e palha-carga (também chamada palha de
paul). O sal fica protegido da acção da chuva do Inverno que se aproxima. O sal
na serra perde algum do seu peso inicial, mas fica privado de sais de magnésio.
Assim se explica que o número de canastras
para perfazer um moio, quando carregado das barachas até à Serra fosse
constituído por 15 canastras e da Serra par o barco, o moio era constituído por
18 canastras, 3 canastras a mais para as “quebras”
Alagamento
O alagamento da marinha dá-se no
fim da safra, ou seja depois da última rapação. Quando as primeiras chuvas de
Setembro tornam a cristalização impossível, os marnoteiros metem nas salinas
uma camada de água salgada de 60 cm de altura, sem lhes escoar as águas-mães do
verão antecedente; a marinha fica assim até princípio de Maio.
Esta operação tem lugar depois, das primeiras chuvas de Setembro em que
o marnoteiro, sem evacuar, para o Tejo, as águas mães da última cristalização
introduz pouco a pouco nos talhos a água concentrada que se encontra nos
compartimentos anteriores. Caso a água existente na marinha não for suficiente
utiliza-se a água do viveiro, em dia de maré viva, chegando aos talhos com uma
concentração de 8 a 10º Bé e deixando a marinha toda alagada. A água atinge uma
altura de 50 a 60 cm e tem por objectivo proteger a marinha dos rigores do Inverno.
Segundo o inquérito ao salgado de Alcochete, realizado em 1954, por Luís A.
Lopes Dias, a água atinge uma altura de 30 a 40 cm. Refere o mesmo autor que
“com esta forma de alagamento, as limpezas são bastante atenuadas e o cozimento
fica mais protegido, pois não se depositam imediatamente lamas sobre ele.
Nas marinhas de Alcochete há ainda a
distinguir os dois tipos de alagamento: o normal e o de urgência. O alagamento
normal refere-se ao que acabamos de descrever – no fim da última rapação, fim de
Setembro, princípio de Outubro, quando as condições climatéricas já não
permitem uma nova colheita, procede-se o alagamento progressivo da
marinha.
O alagamento de urgência é motivado pela
chegada das chuvas abundantes, imprevistas. Assim a marinha é rapidamente
alagada para evitar males maiores.
A altura da água do alagamento nos talhos deve
manter-se mais ou menos constante, escoando ou dando água à marinha, conforme a
necessidade. Os restantes compartimentos são também alagados, excepto o viveiro
e a reserva que ficam em seco e com as portas abertas para o esteiro,
impedindo-se desta forma a formação de limos. Assim fica a marinha durante todo
o Inverno até Março, altura em que se inicia o novo ciclo de produção com os
trabalhos preparatórios para a produção do sal.
Fonte: Maria Dulce de Oliveira Marques – Dissertação de
Mestrado –“O Salgado de Alcochete”
Sem comentários:
Enviar um comentário