29 janeiro 2007

Crónica lindíssima

Em mais uma das minhas divagações na net, encontrei um texto que mais uma vez me fez encher de orgulho. Alcochete ainda sabe receber bem.

Com as suas palmeiras gigantes à beira Tejo, o Miradouro Amália Rodrigues, homenagem da população local à grande musa do Fado, contrasta fortemente com a arquitectura rural deste canto ribeirinho da vila. Nas traseiras da Ermida da Nossa Senhora da Vida, edifício de traça maneirista fundado em 1577, as casinhas de piso térreo, com as suas fachadas caiadas de branco e rodapés pintados em azul marinho, como se vê em muitas casas rurais no Alentejo e no Ribatejo, são o modelo perfeito da arquitectura típica das povoações rurais. Por este cantinho arquitectónico, começa-se a vislumbrar a essência desta vila tão próxima de Lisboa e da grande lezíria ribatejana.
O pontão frontal à Igreja da Misericórdia e ao Museu de Arte Sacra é um local privilegiado para observar Lisboa. A vista é, simplesmente, deslumbrante: vê-se com nitidez a Ponte Vasco da Gama, o Parque das Nações e os contornos físicos da margem ribeirinha da capital. A vista, a tranquilidade, a luminosidade, e a proximidade do rio fazem deste sítio um ponto de encontro inevitável entre locais e turistas. É aqui que os habitantes locais conversam sentados ao sol, enquanto observam o rio e os turistas que contemplam com admiração a vista de Lisboa. A construção da ponte Vasco da Gama foi uma das melhores coisas que podia ter acontecido a Alcochete. Ficando a menos de meia hora da capital, a vila tornou-se um destino de fuga irresistível para os lisboetas ao fim de semana, que aqui vêm deliciar-se com a gastronomia local. Como não podia deixar de ser, a nova ponte sobre o Tejo fomentou também o desenvolvimento urbanístico. E, infelizmente, os malefícios deste crescimento urbano desordenado já são visíveis ao longo da margem ribeirinha.
A importância histórica de Alcochete está bem presente no pelourinho existente no Largo da Misericórdia, do outro lado da estrada que passa frente à Igreja da Misericórdia, agora adaptada a Museu de Arte Sacra. Foi neste edifício apalaçado, transformado em Igreja da Misericórdia no século XVI, que terá nascido o rei D. Manuel I, em 1469. E, por isso mesmo, esta estrada ribeirinha chama-se Av. D. Manuel I e conta com uma estátua deste monarca, um dos reis que mais impulsionaram a expansão dos Descobrimentos portugueses. Com uma localização estratégica entre a charneca e o Tejo, grandes fontes de fornecimento de alimentos para as populações ribeirinhas, Alcochete desempenhou outrora um papel fulcral na ocupação humana da margem sul do rio. Por este território sobranceiro ao Mar da Palha passaram suevos, vândalos, árabes, mas foi no século XV, sob a égide da dinastia de Avis, que a povoação alcançou o seu período de máximo esplendor. Os bons ares e a presença abundante de veados, javalis e lobos na charneca, que permitiam as caçadas tão apreciadas pela nobreza na época, elevaram Alcochete a “estância de repouso” da corte quinhentista. D. João I e D. João II passaram aqui longos períodos de repouso. D. Fernando, duque de Viseu e irmão de D. Afonso V, estabeleceu residência no antigo palácio de D. Brites Pereira, sobrinho de D. Nuno Álvares Pereira, que seria doado à Santa Casa da Misericórdia em 1540 e sofreria sucessivas adaptações até apresentar o aspecto actual. Foi esta presença da corte que impulsionou o desenvolvimento da povoação: entre os finais de quatrocentos e os finais de setecentos, Alcochete desenvolve-se à sombra da protecção régia, com o Foral manuelino de 1515, e do poder da nobreza rural, cujos domínios territoriais extravasavam para fora do termo da vila.
As ruas estreitas abertas em direcção ao rio conduzem a um coração urbano que prima pela surpresa. Por essas ruas, pontuadas de casas de piso térreo, fachadas coloridas, plantas à porta, e roupa, muita roupa, pendurada a secar ao sol, descobre-se uma atmosfera rural autêntica, imune aos efeitos da modernização que têm destruído tantos traços originais das pequenas povoações portuguesas. É impressionante como tão perto da capital ainda exista uma povoação com a sua atmosfera genuína preservada. As pequenas mercearias, os velhos sentados onde quer que haja sol e as brincadeiras das crianças nas ruas são sinais mais emblemáticos de uma aldeia do interior do que de uma vila a poucos minutos de Lisboa. O centro urbano concentra ainda um número apreciável de edifícios antigos, decorados com azulejos e cores fortes, e até pátios interiores, com casas de piso térreo, com fachadas caiadas de branco e rodapés pintados de azul.
Alcochete é uma terra de pescadores, salineiros e campinos. Os barcos garridos, atracados no pequeno porto diante da Igreja da Misericórdia, a estátua monumental do Salineiro, no Largo do Salineiro, e a estátua emblemática do Forcado nos cornos do touro, no Largo João da Horta, evocam um pouco da história desta vila que viveu sempre do rio e da charneca. O sal, fonte do sustento de milhares de famílias nos séculos XVII e XVIII, ainda é extraído nalgumas salinas na região, mas esta actividade está longe da pujança económica que outrora enriqueceu a povoação. Pelo contrário, a festa brava mantém-se viva como sempre: o gado bravo continua a ser criado nas explorações agrícolas da região e as touradas e as pegas de touros continuam a ser uma paixão dos locais.A paisagem entre a vila e a Ponte Vasco da Gama é um espanto. A inesperada imensidão do terreno plano causa uma estranha sensação de infinito. Na margem do rio sobressaem os moinhos antigos, as antigas secas do peixe, implantadas em meados do século XX, a pequena praia do Cerradinho, as antigas salinas do Samouco, e os sapais da Reserva Natural do Estuário do Tejo, a zona húmida mais importante do país. O amanho cuidado da terra mostra como a agricultura ainda sobrevive na margem sul do Tejo, a escassos quilómetros da agitação urbana de Lisboa.
Texto de António Sérgio Azenha em site INATEL

1 comentário:

Nídia Nobre disse...

um blog com muito bom gosto. adoro a foto.
uma alcochetana.