02 julho 2007

A Ultima Marinha



Em meados do século XX,
dezenas de salinas espraiavam-se
ao lado do Tejo e a extracção
do sal era a actividade económica
mais importante de todo
o concelho de Alcochete.
Hoje, em laboração, apenas
subsistem as Salinas do Brito.
É aí que se situa o Museu do Sal,
activo e dinâmico,
mantendo viva a tradição





Ocupação ancestral, em Alcochete, perde-se no tempo a origem da faina do sal. A descoberta, em Porto de Cacos, de ânforas romanas que serviriam provavelmente para guardar preparados de peixe faz pensar que já na época se faria a recolha de sal na região. Porém, de seguro, apenas os registos dos cronistas que ascendem à dinastia de Borgonha e a certeza de que, em meados do século passado, a salicultura terá tido a maior importância para a economia de Alcochete.

Manuel Nicolau de 87 anos, salineiro desde os 13, é o único trabalhador que faz parte dos quadros das Salinas do Brito, pertença da Fundação João Gonçalves Júnior (FJGJ) – as únicas que se mantêm em todo o concelho. Nicolau começou por ser criado, “a carregar lamas e a tratar das limpezas”. Transportava também água, acalmando a sede aos trabalhadores que, sob o sol escaldante do Verão, corriam para carregar mais uma canastra de sal. Miúdo ladino, aproveitava para ver como faziam os outros, ia aprendendo, mostrando capacidades. Conta que com 17 anos “já ganhava o ordenado de um homem”, correndo ao lado destes, descalço, tentando transportar rapidamente as quinze canastras que haviam de perfazer o moio de sal. Cedo chegou a mestre de máquinas da marinha. Era ele quem abastecia e fazia a manutenção dos motores que bombeavam a água entre o viveiro e a talharia. Além disso, controlava as utilizações desnecessárias das máquinas, consumidoras de combustível, quando a altura da água era suficiente para correr entre talhos: “enquanto a água entrasse pelo seu pé, não havia necessidade de um motor”.
“Era uma vida dura”, afirma Manuel Nicolau, “a vida de salineiro sempre foi muito difícil”. A distância entre a vila e as marinhas era percorrida a pé, pela madrugada. Ainda o dia não tinha bem nascido e já os homens rapavam o sal, que ao sol da tarde, reflectido pelo cristal branco, ninguém suporta. Os momentos de descanso, esses, eram passados a escavar os desenhos feitos em pedaços de madeira, dos quais haviam de nascer as formas para fazer os pãezinhos de sal. “Ganhava-se muito mal, nessa altura”, recorda o salineiro. “Além do mais, era um trabalho sazonal”. Por isso mesmo, quando três complexos industriais se instalaram em Alcochete, como a maior parte dos seus conterrâneos, Nicolau não perdeu tempo para procurar melhor soldo que cobrisse o ano inteiro.
Data dessa altura o declínio da exploração do sal. A decadência da indústria conserveira e o mineral estrangeiro, colocado no mercado a preços muito mais baixos, competindo com o exportado por Portugal, ditaram o fim de muitas das salinas nacionais. Alcochete, que fora considerado, no século XIX, o centro salineiro mais importante do país, não foi excepção. As marinhas, outrora sinónimo de riqueza, passaram a significar prejuízo, vindo progressivamente
a ser abandonadas. Criada por vontade de João Gonçalves Júnior, a Fundação com o seu nome teve desde sempre a finalidade de apoiar a população mais desfavorecida de Alcochete. Como forma de providenciar fundos para manutenção da FJGJ, as Salinas do Brito foram anexadas ao legado. Quando ocorre o declínio da venda do sal, como todas as outras, a marinha começa a apresentar prejuízos. Consciente da impossibilidade de manter a situação, mas também do facto da extracção do sal ser uma actividade intimamente ligada à história social e económica do concelho, a administração da FJGJ procura um parceiro que viabilize a manutenção das marinhas sem que estas se tornem um peso para a Fundação. É então assinado um protocolo com a Câmara Municipal de Alcochete, através do qual esta assume as despesas das salinas, sendo criado o Museu do Sal. Manuel Nicolau que, apesar da estabilidade oferecida pelo emprego na indústria, não apreciara o escasso movimento do seu cargo, havia voltado às salinas. Por essa altura já era ele o 25 marnoteiro que orientava e dirigia a marinha. E mantém-se, diariamente,
controlando os níveis das águas e a labuta dos trabalhadores.
Ainda de madrugada, os seus homens vão chegando. O trajecto, outrora palmilhado, é agora feito de automóvel, motorizada ou bicicleta. Porém, os horários não mudaram, que do sol não há protecção possível. Mal o dia ameaça despontar, a curta fila de oito homens encaminha-se para a talharia. Semi-mecanizada, a safra mostra-se todavia muito menos rentável do que nos tempos em que era totalmente feita à força de braços: “não há pessoal”, diz Nicolau. Não estranhamos. Perante o horário e o esforço físico exigido a estes homens, e apesar dos descontos inteiramente
suportados pela FJGJ, um ordenado que não atinge os e 400,00 € mensais não parece muito apelativo, sobretudo se pensarmos que as ofertas da capital se situam à distância de um olhar. Os mais novos só para ali vão quando, de todo, não encontram outras alternativas. São essencialmente os mais velhos, procurando um complemento às reformas, que se mantêm mais assíduos no trabalho das salinas. Além do mais, continuam a não existir contratos, permanecendo a inconstância sazonal do ofício. As máquinas facilitam hoje a vida destes homens, que já não correm entre pranchas na procura de perfazer o moio de sal que havia de lhes render mais uns escudos no final da semana.
Efectivamente, é já a fresadora que prepara o sal para a rapadura, é o guincho que substitui o trabalhador na arte de puxar o sal para a borda com o intuito de secar e deixar escorrer o magnésio, e é a passadeira quem transporta o mineral para a serra. Porém, os salineiros continuam a possuir a tez curtida pela mistura do sol com a salinidade das águas em que se movimentam dentro dos talhos quando rapam o sal que emerge, rude e cortante. Continua a ser necessário verificar os níveis de água e de salinidade de cada talho, moirar e supervisionar quando há peças aptas para serem rapadas. Desgastados pelo tempo e pela companhia corrosiva do mineral, por vezes os motores recusam-se a trabalhar. Nessas alturas tudo o mais pára porque é necessária a totalidade dos braços para ajudar a carregar o motor de substituição. Quando a passadeira da máquina de transporte se parte, a serra de sal cessa de crescer e há que esperar pelo técnico da câmara que assegura o funcionamento da maquinaria. Contudo, a urgência de outros tempos, quando todo o cristal recolhido tinha escoamento garantido no mercado, já não existe. É quase seguro que as cerca de 900 toneladas de sal que compõem a serra irão ficar em espera até encontrarem um comprador interessado. Longe vai o tempo em que as próprias fábricas de salga e secagem de peixe mandavam pessoal para ensacar e transportar o mineral.

Manuel Nicolau, apesar da idade, mantém-se no ofício que lhe ocupou a maior parte da sua existência. Este ano, uma vez mais, antes que a chuva chegue e abra buracos na pilha de sal, ele assistirá à sua cobertura, com palha obtida nos pauis ribatejanos. Após a colocação das habituais 10 a 15 camadas de ponjas e respectivas cintas de lama, será ele quem subirá à serra para colocação do combro, rematado a lama, que “não deixará que o vento pegue na palha”.
Foi também ele o herdeiro das formas do último marnoteiro, com as quais, utilizando o sal de embate, vai fazendo os tradicionais pãezinhos de sal. E continua a ser ele quem, pelas 6:00h da manhã, lança chave ao cadeado que nos abre os portões deste admirável mundo velho: o Museu do Sal, ali mesmo às portas de Alcochete.


Glossário do salCanastras / cestas onde era transportado o sal, com capacidade para cerca de 56litros;
Cintas / camada de lama colocada à volta das ponjas e no combro, com a finalidade de segurar a palha que cobre a serra;
Combro / camada de palha colocada no topo da serra rematando as várias ponjas que protegem o sal. O apuro na elaboração do combro vai tornar a serra mais ou menos duradoura;
Marinha / nome também dado à salina;
Marnoteiro / trabalhador responsável pelo funcionamento de toda a salina;
Moio / cerca de 840 litros de sal, 15 canastras a 56 litros cada;
Moirar / fase em que a água fica a evaporar, ganhando por isso salinidade;
Pãezinhos de sal / elaborados a partir do sal de embate que é colocado dentro de formas de madeira, com desenhos talhados em alto-relevo. São tradicionais em
Alcochete;
Ponja / chama-se a cada camada de palha disposta em altura para cobrir a serra;
Rapar / puxar e juntar o sal em pequenos montes para escorrer e limpar do magnésio antes de ser colocado na serra;
Sal de embate / cristaliza nas águas remexidas pelo vento (móveis), ficando um sal fino e gomoso que, precisamente por estas características, se mostra o melhor para manter a estrutura dos pãezinhos de sal;
Serra de sal / é formada pelo sal, depois de escorrido, que aí fica a secar até ao fim da safra sendo posteriormente protegido por uma cobertura de palha;
Talharia / conjunto dos talhos que formam a salina
Talho / rectângulo de terreno escavado onde o sal cristaliza;
Viveiro / encontra-se na parte mais elevada da marinha de forma a poder encher-se na preia-mar e despejar na baixa-mar, sendo aí controlada a quantidade de água que se mantém na marinha.





28 JUNHO . JULHO . 2006 . REVISTA VEGA
Texto e fotografias Anabela Oliveira

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa noite... em deambulações que nada têm a ver com sal, fui dar a estes links. Penso que lhe possam interessar, embora não digam directamente respeito a Alcochete! A notar sobretudo a queda nacional de produção de sal marinho em 95! Cumprimentos,
HR
http://www.dgpa.min-agricultura.pt/portal/page?_pageid=33,46256&_dad=portal&_schema=PORTAL&actualmenu=6568&g_d=10255&cboui=10255

http://www2.cm-aveiro.pt/www/cache/imagens/XPQ5FaAXX7205aGdb9zMjjeZKU.pdf