04 abril 2007

Cirio dos Maritimos

Os círios dos marítimos chamavam-se outrora "círios dos marítimos casados e solteiros de Alcochete", resultando de uma profunda fé em Nossa Senhora da Atalaia, padroeira dos marítimos alcochetanos. A origem do actual círio é desconhecida e pode remontar a épocas bastante recuadas, eventualmente coevas, embora haja documentação que aparenta comprovar a sua existência no ano de 1502. Mas subsistem algumas dúvidas na datação, impossíveis de esclarecer até ao momento.
Note-se que por marítimos não se entendia os pescadores mas gente ligada à produção e condução de barcos, o que incluía calafates, carpinteiros, serventes, marujos e outros tripulantes. Ultimamente, porém, quase só os pescadores assumem a responsabilidade da realização da festa, porque a maioria das tradicionais profissões navais extinguiu-se, tendo desaparecido também os arrais e as embarcações típicas do Tejo. Luís Marques considera também que o círio dos marítimos é uma das mais arcaicas e raras manifestações profanas. Numa obra posterior – intitulada «Círio dos Marítimos de Alcochete» – Mário Balseiro Dias descreve uma lenda, segundo a qual, "em época remota, um barco navegava no rio Tejo e uma tempestade surpreendeu-o. Aflito, um dos barqueiros prometeu a Nossa Senhora da Atalaia que, caso se salvasse com os companheiros, organizaria uma confraria para festejá-la anualmente. Como o tempo amainou e puderam alcançar terra a salvo, desde então os marítimos alcochetanos têm cumprido a promessa". O mesmo autor refere que, segundo um documento de 1512, já então existia a Confraria dos Barqueiros de Alcochete.

O círio realiza-se anualmente, durante quatro dias, sempre na Páscoa, tendo uma cruz do festeiro (do séc. XIX e em prata), um guião de seda lavrada e actualmente cerca de uma centena de bandeiras (de cetim e bordadas, pintadas ou estampadas).Constitui a mais antiga tradição conhecida na vila de Alcochete e é uma espécie de ritual para a população da borda d'água (durante séculos caracterizada por marítimos ligados a actividades dependentes do rio). É da tradição que, no período do círio, os romeiros (hoje cerca de um milhar) almocem e jantem em conjunto, com refeições preparadas e confeccionadas sob a responsabilidade do festeiro. A logística dos repastos não é fácil, bastando referir que, normalmente, consomem-se 5 bovinos, 250 quilos de bacalhau, 500 quilos de peixe e mais de uma tonelada de batatas.

Ser festeiro no círio simboliza poder e riqueza, por lhe caber a organização da dispendiosa festa. Antigamente era festeiro quem invocava ter feito uma promessa, ou apresentasse outra justificação aceitável, obtendo prestígio indirecto através dos filhos. No desfile da tarde de domingo as mulheres montam em burros, sentando-se de lado e sempre com as pernas voltadas para o lado direito, devendo os animais ser alindados com flores campestres e lençóis brancos decorados por rendas. As solteiras envergam fatos novos e seguem à frente, as casadas atrás. A última mulher do desfile é a esposa do festeiro. Ao casal cabe convidar senhoras solteiras e casadas que integrarão o cortejo. É o popularmente conhecido "cortejo dos burros".
As mulheres são, assim, o elemento social em evidência neste rito secular alcochetano. Luís Marques assinala no livro atrás citado que, ao exporem-se e ao passearem-se pela vila, afirmam o seu controlo na sociedade. As casadas representam a autoridade e as solteiras anunciam a continuidade. O homem tem papel secundário, tanto mais respeitado quanto a esposa ou a filha se evidenciem no cortejo, pelo que é posto cuidado especial na indumentária e no arranjo e decoração do burro que as transporta.

Na segunda-feira, por volta das 09h00, junto à Igreja Matriz de Alcochete, inicia-se a romaria a pé à Atalaia. Em 2002 foram cerca de duas centenas as pessoas que percorreram os 6km de distância. À chegada à Atalaia os romeiros dirigem-se à igreja, onde assistem à missa, seguindo-se o almoço e a procissão (à frente da qual vai o filho do festeiro, ladeado pela juíza e o juiz. Incorporam-se o guião do círio e a imagem de Nossa Senhora da Atalaia, escutando-se em fundo o rufar do tambor do "Chininá"). Antes da missa os romeiros entregam ao festeiro as bandeiras arrematadas no ano anterior, pagando o valor da arrematação e recebendo em troca um símbolo (a medalha) que colocam no peito. No período da manhã são também entregues as fogaças a leiloar. As bandeiras novas serão benzidas durante a missa e posteriormente entregues ao festeiro, a fim de integrarem o leilão da tarde. As bandeiras e as medalhas identificam o círio e o seu valor define uma hierarquia no funcionamento da festa. As bandeiras contêm, normalmente, uma representação da Senhora da Atalaia, a identificação da localidade, do ofertante e por vezes também a data e a graça obtida. As medalhas são de três tamanhos (as maiores e mais valiosas apenas exibidas pelo filho do festeiro, juíza e juiz), sendo feitas pela esposa do festeiro com cartão, tecido, papel de alumínio e missangas. Constituem, normalmente, representações de motivos náuticos (barcos sobretudo). De notar que as "fogaças", um bolo típico de Alcochete, são os doces pães desta festa popular. Cada ofertante leva sete fogaças para o leilão realizado à porta da igreja da Atalaia, uma por cada dia da semana e pesando individualmente um quilograma, augurando abundância e afastando infortúnios. As fogaças podem ou não constituir o pagamento de uma promessa.Com esse ritual cumprem-se votos antigos e o arrematante compromete-se a trazer outras tantas fogaças ao leilão do ano seguinte.Comer as fogaças oferecidas ao círio, segundo relatos antigos, torna a pessoa e a colectividade a que pertence indemnes à peste e às pragas. O leilão das bandeiras principia pela mais valiosa, o guião. Os arrematantes ficam na posse das bandeiras durante um ano e o guião é guardado pelo festeiro. No final da tarde de segunda-feira, após o regresso do círio a Alcochete, organiza-se novo desfile do círio no circuito tradicional na zona histórica da vila, montando novamente as senhoras os burros. Os novos arrematantes vão atrás, num ruidoso cortejo automóvel, exibindo as bandeiras que guardarão durante um ano. Os ex-detentores de bandeiras prendem uma medalha ao peito. Na noite desse dia, na Casa do Círio, em Alcochete, realiza-se um beberete oferecido pela juíza, pelo juiz e pelo festeiro do ano seguinte. Na terça-feira há novo almoço na Casa do Círio, seguindo-se, ao final da tarde, o desfile na zona histórica de Alcochete de inúmeros pares de jovens, à frente dos quais seguem o filho do festeiro, a juíza e o juiz, ostentando os seus distintivos. A festa termina com um derradeiro e muito aguardado jantar, novamente na Casa do Círio. Há 35 anos fazia-se a festa com 12 contos, actualmente chega a custar 9.000. O financiamento das despesas resulta apenas da arrematação das bandeiras e das fogaças, à porta da igreja da Atalaia, paga somente no ano seguinte. Assim se preserva a tradição secular do Círio dos Marítimos de Alcochete, que descrevemos apenas sucintamente, cuja continuidade nem sempre tem sido fácil. Respeitar e compreender esta romagem e o seu significado profundo na vida local é o que se pede aos alcochetanos de hoje e do futuro.

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá...

Faço parte do Círio da Azoia (concelho de Sesimbra), e somos um dos círios que participa na festa em agosto. Nestes últimos dois anos tenho feito uma espécie de jornal com curiosidades sobre a festa e sobre o meu círio (pormenores que algumas pessoas não tinham conhecimento).
Soube que existia um outro círio que se desloca à atalaia na páscoa e gostava de saber mais pormenores... o teu post ajudou-me muito. gostava de saber se terias alguma foto que eu pudesse utilizar ou se saberias dizer-me quando exactamente é que se deslocam à atalaia.
O meu mail é madalena863@hotmail.com.

Obrigada
Madalena