11 outubro 2007

Barrigana




"De há quarenta anos para cá, com entusiasmo, fervor e admiração, vi jogar quase todos os grandes guarda-redes portugueses, do inesquecível Azevedo, "Hércules do Barreiro", a José Pereira, o "Pássaro Azul". Vi o gigantesco Ernesto, do Atlético, o terror dos extremos, vi Abraão, do Olhanense, vi Cesário, do Sporting de Braga, na tarde de glória, no pelado do Benfica, em que defendeu todos os remates de Palmeiro, Arsénio, Águas e Rogério, vi Capela, da Académica, e Sebastião, o loiro Nero do Estoril Praia, célebres pelos seus voos acrobáticos, vi o fantástico Aníbal, de poupa trabalhada a brilhantina, vi o caprichoso Carlos Gomes pontapear fotógrafos antes de se transferir para Espanha e de ameaçar o presidente do clube, quando não lhe pagavam, com a irónica frase 'no hay dinero no hay portero', acompanhei o Vital, do Lusitano de Évora, que sulcava a relva com o calcanhar pensativo da bota, para marcar o centro da baliza. E todavia, para meu desgosto e frustração, nunca assistiu a nenhum jogo do meu ídolo Frederico Barrigana, o 'Mãos de Ferro', keeper do FC Porto. No intuito de compensar tal desdita, recortava, embevecido, do jornal, os instantâneos que o mostravam a saltar com um avançado, apertando-lhe contra as partes o joelho dissuasor (porquê partes se não inteiras?), a fim de esfriar os ímpetos assassinos do adversário; admirava-lhe a calvície e o boné que a cobria numa exactidão de cápsula; coleccionava-lhe as entrevistas e escutava, boquiaberto, na telefonia do meu pai, de dedos em concha na orelha, os relatos de Artur Agostinho, que, aos domingos, às 3 da tarde, narrava em tom épico, as proezas do grande Frederico Barrigana num estádio a rebentar de público. Aos 12 anos, se eu não desejasse, com tanta paixão, tornar-me escritor, quereria ter sido o "Mãos de Ferro". Mas, claro, possuía o sentido das limitações suficiente para compreender que não se pode querer ser o grande Frederico Barrigana: é-se, por dom divino, perfeito como ele só, desde o início."

António Lobo Antunes




Frederico Barrigana fez-se jogador de futebol no Unidos do Montijo, perto da terra que o viu nascer, Alcochete. No início de 1943 o Sporting avançou para a sua contratação, mas a baliza leonina, nessa altura, era propriedade exclusiva de João Azevedo, um ‘monstro sagrado’ das redes. Por isso, nunca chegou a debutar de leão ao peito.Ainda nesse ano, um acontecimento de cariz político, com remoques cinematográficos, marcou a vida de Barrigana. Conta-se assim: O guarda-redes do FC Porto, Bela Andrasik, húngaro de nascimento, desapareceu misteriosamente. Veio a saber-se depois que era um espião antinazi e que fugira do país com medo que tal se descobrisse pela polícia secreta no país de Salazar. Com a baliza vazia, os dirigentes do FC Porto pediram encarecidamente ajuda ao Sporting, que emprestou Barrigana. Chegado ao Porto, o guarda-redes pode finalmente provar o seu valor. Pegou de estaca e já não regressou ao Sporting.
Durante 12 anos mostrou qualidades invulgares na baliza portista (também na Selecção), com destaque para a segurança com que saía de entre os postes.
PERFIL
Frederico Barrigana nasceu em Alcochete em 28 de Abril de 1922. Começou a jogar no Unidos do Montijo, ingressou no Sporting aos 21 anos e uma época mais tarde mudou-se para o FC Porto, onde defendeu a baliza dos dragões durante 12 épocas, sem contudo ter ganho campeonatos. Na parte final da carreira, após sair do FC Porto, jogou três anos no Salgueiros. Foi internacional em 12 ocasiões, com estreia num Espanha-Portugal.

Faleceu em 29 de Setembro de 2007.
Fontes: Correio da Manhã, Zero Zero, O Record