27 abril 2007

Padre João Rodrigues



Em muitas pesquisas, procurando por Alcochete, um nome esbarrava constantemente no meu ecran. João Rodrigues, padre e missionário jesuita no Oriente. Esta minha pesquisa alongou-se quando em muita bibliografia, este nome teimava aparecer, juntando-o a Alcochete. Não raros foram os casos, em que autores, em primeiro lugar colocavam Alcochete como local de nascimento e depois suscitavam a dúvida em parêntesis com outra possível localidade, Sernancelhe.

No livro “Portuenses Ilustres” de Sampaio Bruno, escrito em 1906, o autor refere essa duvida, mas coloca Alcochete em primazia. Já em outros livros, como no “Memorias de Literatura Portugueza” da “Academia Real das Sciencias”, publicado 1856 na sua pagina 143 e “Macau e sua Diocese” escrito por Manuel Teixeira e publicado em 1979 na sua página 258, relacionam o Padre João Rodrigues e o seu nascimento com Alcochete. Em toda a minha pesquisa, apenas num livro é referido concretamente uma “confusão com outro missionário do Japão com mesmo nome nascido em 1558” em Alcochete. Este livro, o “Anais” da “Academia Portuguesa de Historia” de 1946 é que tende a desvanecer a questão, mas realmente entre 1558 e 1561 existiram dois jesuítas missionários portugueses com o mesmo nome em terra do Sol Nascente e um deles definitivamente era alcochetano.




No site da Câmara Municipal de Sernancelhe existem largas referências ao Padre João Rodrigues e à sua obra, bem como a informação que foi imortalizado, dando o seu nome a ruas e escolas.
Deixo então a biografia oficial, presente no referido site.


Padre João Rodrigues nasceu em Sernancelhe em 1560 ou 1561. Com apenas 14 anos saiu de Portugal em direcção à Índia. Em 1580 chegou ao Japão por intermédio da Companhia de Jesus. Ao serviço da Companhia dedicou-se ao ensino da gramática e do latim. Alguns anos mais tarde concluía os estudos em Teologia em Nagasaki. Foi a Macau para ser ordenado sacerdote e, tendo regressado ao Japão, tornou-se intérprete, servindo como agente intermediário nas compras feitas às naus estrangeiras. Conhecido como comerciante, diplomata e político, Padre João Rodrigues acabaria expulso do Japão no ano de 1610. Regressado a Macau, iniciou uma série de investigações com vista ao conhecimento das origens das comunidades cristãs ali estabelecidas desde o século XIII. Considerado um clássico para o conhecimento do Japão, Pe. João Rodrigues foi o autor da primeira gramática da língua japonesa e escreveu a “História da Igreja no Japão”. Apontado como um vulto da cultura universal, faleceu em Macau em 1633.


Do Alcochetano Padre João Rodrigues existiu uma sombra de 450 anos, que agora teve um momento de luz.



Fontes: Camara Municipal de Senancelhe e Google Books

Dr. Manuel Simões Arrôs






No blogue "Praia dos Moinhos", tomei conhecimento do falecimento do Dr. Arrôs.
Considerando este homem como um marco na nossa comunidade, presto-lhe também a minha homenagem, transcrevendo o texto elaborado pelo Sr. Fonseca Bastos e colocado no seu blogue.


"Em memória do Dr. Simões Arrôs"

"Só agora tendo tomado conhecimento do falecimento do Dr. Manuel Simões Arrôs, ocorrido no passado dia 9, aos 96 anos, e lamentando, profundamente, que o passamento dessa invulgar personalidade alcochetana seja resumido em 11 linhas no jornal da terra (?), por imperativo de consciência reproduzo aqui, com as necessárias actualizações, o que acerca dele escrevi, em 2003, no defunto «Tágides».

Durante meio século tratou da saúde à maioria dos pais e avós de famílias tradicionais de Alcochete: camponeses, funcionários públicos, salineiros, operários, forcados e marujos.

Só os mais antigos residentes conheciam o Dr. Manuel Simões Arrôs, que desempenhou todos os cargos clínicos do concelho durante cerca de meio século: delegado e subdelegado de saúde, médico camarário, da Misericórdia, da "Caixa", de três secas de bacalhau e, no final da carreira, também em três fábricas.

Levado na onda pelo sogro, ajudou a fundar o Aposento do Barrete Verde, em 1944. Oito anos depois seria até presidente da Direcção.Era uma das memórias vivas de Alcochete, desde 1943, preciosamente refrescada pela da esposa, campeã em datas.


A juventude


A 6 de Dezembro de 1910 nascia o primeiro médico da "Caixa" que houve em Samouco e Alcochete. Veio ao mundo e cresceu entre lutas operárias, em Braço de Prata (Lisboa).
Acaba por se formar na Faculdade de Medicina do Porto, em 17 de Outubro de 1941, obtendo a primeira colocação na vila alentejana de Ourique poucos dias depois.
Chega a Alcochete em 31 de Março de 1943, admitido por concurso público como "médico camarário" para a freguesia de Samouco, onde se desloca, de bicicleta, duas vezes por semana ou sempre que há casos urgentes.

Médico do povo e da Misericórdia

A 2 de Maio de 1944 é nomeado médico da Casa do Povo de Alcochete e, em 1951, o então director e médico residente do Hospital de Alcochete (situado à época na ala esquerda do actual edifício da Santa Casa da Misericórdia) era o Dr. José Grillo Evangelista - muito conceituado na vila e cujo nome seria perpetuado, anos depois, numa artéria da urbanização dos Barris.
Esse clínico desentende-se com a mesa da instituição e resolve sair, sendo substituído nas funções de médico e director pelo jovem Simões Arrôs.
O hospital cresce em importância e, em 1957, virá a ser criado um centro de assistência aos tuberculosos. O médico Simões Arrôs incumbe-se dele, a partir de 1 de Julho desse ano. Tais serviços serão extintos a 31 de Julho de 1978.

Médico dos primeiros operários fabris

Em 1958 é inaugurada a fábrica de pneus Firestone, que angaria localmente a maioria dos quadros médios e dos trabalhadores menos qualificados. O Dr. Simões Arrôs é o primeiro médico dessa empresa, da qual vem a ser afastado, em meados da década de 70, em circunstâncias nebulosas e por influência de um padre. Entretanto, em 1959, chegavam também as fábricas de secagem e de preparação de bacalhau da Terra Nova. Primeiro instala-se a Bacalhau de Portugal, a seguir a Pescal e, por fim, a Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau (SNAB).
O Dr. Simões Arrôs será médico em todas, vindo a ser afastado da Pescal e da SNAB, no princípio da década de 70, quando, numa reunião da União Nacional (partido único do regime), um capataz da empresa diz a amigos que o "chefe do reviralho em Alcochete" é Simões Arrôs. Presente, o "patrão" almirante Henrique Tenreiro manda despedir o clínico.

Ficará só na Bacalhau de Portugal até a empresa se extinguir, porque o seu responsável era também assistido por ele e sempre se recusou a aceitar a exigência de afastamento feita por Tenreiro.Na senda da industrialização, em 1963 e 1965, respectivamente, abrem também as as fábricas de alumínio (Português-Angola, já encerrada) e de latoaria Ormis (hoje a multinacional Crown, Cork & Seal), nas quais o Dr. Simões Arrôs exercerá também funções.
Nesta esteve até ao princípio da década de 90, tendo sido a sua última ocupação profissional.


Médico da Previdência

Em 1961, quando o Dr. Grillo Evangelista se reforma, o colega Simões Arrôs substitui-o como subdelegado de saúde no concelho. A 1 de Julho de 1972 será também nomeado delegado de saúde.Entretanto, a 1 de Julho de 1962 era contratado pela Caixa de Previdência de Setúbal para a Casa do Povo de Alcochete (a primeira existiu no n.º 7 da Rua do Amaral, no edifício onde hoje está a sede social do Grupo Desportivo Alcochetense). A assistência médica torna as instalações acanhadas e a Casa do Povo transitará então para a Rua do Chão do Conde.Em 1963 é inaugurado o posto n.º 16 (Alcochete) da Caixa de Previdência, de que vem a ser o primeiro director, seguindo-se, a 1 de Julho de 1966, o cargo de médico do posto n.º 5 da Previdência (no Montijo). A 1 de Janeiro de 1974 virá a ser também nomeado médico-chefe deste posto.
Em Março de 1968, a mesa da Misericórdia decide que as tarefas de enfermagem ficam a cargo de uma irmandade religiosa, gerando-se um litígio com a enfermeira-chefe da época, o qual levará, em 1 de Abril, à demissão colectiva da equipa médica e da enfermeira (esposa do Dr. Simões Arrôs, com a qual viria a casar, em segundas núpcias, em 1973).
A 6 de Dezembro de 1980 cessa funções como médico municipal e delegado de saúde, por ter atingido o limite de idade (70 anos).
A 1 de Setembro de 1982 sai também da Caixa de Previdência por estar à beira dos 72 anos de idade.


Histórias de "João Semana"

De meados da década de 40 o Dr. Simões Arrôs recordava-se (em 2003) do caso de um doente com tuberculose, que medicou com várias embalagens de estreptomicina, na época uma droga de preço elevado e fora do alcance de gente pobre.
A comparticipação pública na aquisição de medicamentos era então somente concedida a beneficiários, o que não era o caso desse paciente, pelo que os familiares teriam de pagar integralmente as embalagens necessárias.
Como essa família era muito pobre, o clínico Simões Arrôs decide emitir as receitas em nome do beneficiário, de modo a evitar despesas insuportáveis.
Mas Alcochete era uma aldeia, em que toda a gente se conhecia e revia quase diariamente, e, dias depois, o tesoureiro da Casa do Povo pergunta ao clínico qual a razão porque emitira receitas em nome de um paciente gozando de boa saúde, pois estivera com ele. Semanas depois a Casa do Povo queixa-se do Dr. Simões Arrôs aos serviços centrais da Previdência, que enviam um inspector para tirar o caso a limpo.
Este manda chamar todas as pessoas a quem o clínico passara receitas "suspeitas" e elas confirmam terem sido emitidas a seu favor. Logo, o clínico não estava a desviar medicamentos em proveito pessoal, como constaria de uma denúncia que o dava como homem rico.
Não podendo pegar-lhe por aí, o inspector dá ao caso contornos políticos. E avisa o Dr. Simões Arrôs de que, embora nada de reprovável fosse detectado, possivelmente seria demitido por ter fama de ser "comunista" - coisa que, na época e na terra, era comum ser apontado a algumas pessoas influentes.
Em meados da década de 40 tal "acusação" equivalia a ser despedido do Estado. Pior ainda no seu caso porque, anos antes, quando frequentava a faculdade de medicina, batera com as costas nas tarimbas do Aljube, da Penitenciária e da sede da PIDE.
Em 2003 confessava-me que nunca foi comunista, embora lidasse com a miséria do povo e detestasse o Estado Novo. E se alguma influência a propaganda marxista teve nos seus ideais de vida, quando viaja à URSS, em 1972, tudo se desmorona ao descobrir pedintes nas ruas e miséria como a de Alcochete.

A fundação do Aposento do Barrete Verde

A participação do Dr. Simões Arrôs na fundação do Aposento do Barrete Verde, em 1944 - cerca de um ano após assentar arraiais no concelho - faz-se por influência de seu sogro, Virgílio Jorge Saraiva, amante da festa brava e ligado à organização das festas anuais desde o seu início, em 1942.
O Aposento nasce num almoço organizado por António Luís Regatão, farmacêutico e então proprietário da Farmácia Gameiro, repasto para o qual Dr. Simões Arrôs é convidado pelo sogro.
Em 2003, com 91 anos e uma visão desapaixonada da política recente e do desenvolvimento da vila, era ainda indiscutível referência do concelho.
Todos os anos, no seu aniversário natalício, recebia inúmeras homenagens de gratidão.
Em lugar de destaque guardava cerâmicas e salvas dedicadas por forcados, bombeiros, colectividades artísticas e desportivas e pelos Centros de Saúde de Montijo e Alcochete.
Ao longo da vida foi ainda presidente das direcções do Aposento do Barrete Verde (em 1952) e dos Bombeiros Voluntários de Alcochete, bem como presidente da Assembleia Geral da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. Tratou (e ainda tratava em 2003, esporadicamente) de forcados e jogadores de futebol do Alcochetense, do Vulcanense e do Grupo Desportivo do Passil.


Principais homenagens






Em 14 de Fevereiro de 1981, almoço de homenagem organizado por dois amigos, no qual participaram cerca de 300 pessoas, tendo então recebido a medalha de mérito da Câmara Municipal de Alcochete.
Em Setembro de 1982 foi também homenageado pela vila de Alhos Vedros, onde durante muitos anos presidiu às juntas médicas que determinavam as reformas antecipadas de trabalhadores.
A 25 do mesmo mês, homenagem dos trabalhadores do posto médico do Montijo, que lhe ofereceram um relógio em ouro.
A 10 de Junho de 1991, homenagem do Governador Civil de Setúbal, que lhe entrega a medalha de mérito do distrito.
A 10 de Fevereiro de 2001, almoço de homenagem promovido pelo Aposento do Barrete Verde, que dá o seu nome a uma das salas da sede. Associa-se a Câmara Municipal de Alcochete, cuja edilidade lhe outorga a medalha dourada de mérito (o mais alto galardão do município). O almoço teve tal afluência que as inscrições tiveram de ser encerradas uma semana após o seu anúncio, por se ter esgotado a lotação da sala.
Em 2006 o município de Alcochete concedeu-lhe nova distinção honorífica.

Embora algo tenha escrito sobre o assunto e muito mais debatido com responsáveis autárquicos, nunca consegui que, em vida, o Dr. Manuel Simões Arrôs recebesse a honra que mais ansiava: ter o seu nome perpetuado numa artéria da vila.Continuo a considerar que todas as honrarias e os gestos de gratidão devem exprimir-se durante a vida das pessoas. Infelizmente, continua a ser norma que apenas os defuntos têm direito a emprestar o nome a uma rua. Não conheço lei que a tal obrigue, nem nunca ninguém me deu uma explicação aceitável.Simões Arrôs merecia tê-lo na rua do Centro de Saúde de Alcochete, a que, há anos, deram o nome do capitão Salgueiro Maia."


Transcrito de: "Praia dos Moinhos"
Fotos cedidas por Fonseca Bastos

23 abril 2007

Procissão Fluvial




No passado dia 15 de Abril, recebi o seguinte mail que passo a transcrever:

"CARO SENHOR
VI O CIRIO DOS MARITIMOS DE ALCOCHETE NO SEU BLOG;
DAR-ME-IA GRANDE GOSTO SE PUDESSEMOS ENCONTRAR-NOS NAS MINHAS IDAS À PÁTRIA PARA FALARMOS DA SENHORA DA ATALAIA E ENTREGAR-LHE UM CD ROM COM A HISTÓRIA DE 1887 E ALGUMAS IMAGENS, UMAS ANTIGAS OUTRAS DA PROCISSÃO QUE REINICIÁMOS HÁ DOIS ANOS.
ESPERO, PELO MENOS, ENCONTRÁ-LO COM OS QUE FOREM DE ALCOCHETE NA PROCISSÃO PELO TEJO QUE ESTE ANO SERÁ A SEGUNDA DO SÉCULO XXI DEPOIS DE QUASE UM SÉCULO DE INTERRUPÇÃO; NOS DIAS 2 E 3 DE JUNHO A PARTIR DO CAIS DA MOITA. ESPERAMOS QUE AS EMBARCAÇÕES DE ALCOCHETE ESTEJAM PRESENTES PARA LEVAREM QUEM QUEIRA IR.

OS MELHORES CUMPRIMENTOS

F. CARVALHO RODRIGUES"




Além de passar informação sobre esta procissão, estou grato pela visita ao meu blog e mostro o meu interesse sobre a informação histórica que tem para divulgar. Mediante o meu tempo disponivel, irei por tudo tentar estar presente.

Alcochetano

04 abril 2007

Cirio dos Maritimos

Os círios dos marítimos chamavam-se outrora "círios dos marítimos casados e solteiros de Alcochete", resultando de uma profunda fé em Nossa Senhora da Atalaia, padroeira dos marítimos alcochetanos. A origem do actual círio é desconhecida e pode remontar a épocas bastante recuadas, eventualmente coevas, embora haja documentação que aparenta comprovar a sua existência no ano de 1502. Mas subsistem algumas dúvidas na datação, impossíveis de esclarecer até ao momento.
Note-se que por marítimos não se entendia os pescadores mas gente ligada à produção e condução de barcos, o que incluía calafates, carpinteiros, serventes, marujos e outros tripulantes. Ultimamente, porém, quase só os pescadores assumem a responsabilidade da realização da festa, porque a maioria das tradicionais profissões navais extinguiu-se, tendo desaparecido também os arrais e as embarcações típicas do Tejo. Luís Marques considera também que o círio dos marítimos é uma das mais arcaicas e raras manifestações profanas. Numa obra posterior – intitulada «Círio dos Marítimos de Alcochete» – Mário Balseiro Dias descreve uma lenda, segundo a qual, "em época remota, um barco navegava no rio Tejo e uma tempestade surpreendeu-o. Aflito, um dos barqueiros prometeu a Nossa Senhora da Atalaia que, caso se salvasse com os companheiros, organizaria uma confraria para festejá-la anualmente. Como o tempo amainou e puderam alcançar terra a salvo, desde então os marítimos alcochetanos têm cumprido a promessa". O mesmo autor refere que, segundo um documento de 1512, já então existia a Confraria dos Barqueiros de Alcochete.

O círio realiza-se anualmente, durante quatro dias, sempre na Páscoa, tendo uma cruz do festeiro (do séc. XIX e em prata), um guião de seda lavrada e actualmente cerca de uma centena de bandeiras (de cetim e bordadas, pintadas ou estampadas).Constitui a mais antiga tradição conhecida na vila de Alcochete e é uma espécie de ritual para a população da borda d'água (durante séculos caracterizada por marítimos ligados a actividades dependentes do rio). É da tradição que, no período do círio, os romeiros (hoje cerca de um milhar) almocem e jantem em conjunto, com refeições preparadas e confeccionadas sob a responsabilidade do festeiro. A logística dos repastos não é fácil, bastando referir que, normalmente, consomem-se 5 bovinos, 250 quilos de bacalhau, 500 quilos de peixe e mais de uma tonelada de batatas.

Ser festeiro no círio simboliza poder e riqueza, por lhe caber a organização da dispendiosa festa. Antigamente era festeiro quem invocava ter feito uma promessa, ou apresentasse outra justificação aceitável, obtendo prestígio indirecto através dos filhos. No desfile da tarde de domingo as mulheres montam em burros, sentando-se de lado e sempre com as pernas voltadas para o lado direito, devendo os animais ser alindados com flores campestres e lençóis brancos decorados por rendas. As solteiras envergam fatos novos e seguem à frente, as casadas atrás. A última mulher do desfile é a esposa do festeiro. Ao casal cabe convidar senhoras solteiras e casadas que integrarão o cortejo. É o popularmente conhecido "cortejo dos burros".
As mulheres são, assim, o elemento social em evidência neste rito secular alcochetano. Luís Marques assinala no livro atrás citado que, ao exporem-se e ao passearem-se pela vila, afirmam o seu controlo na sociedade. As casadas representam a autoridade e as solteiras anunciam a continuidade. O homem tem papel secundário, tanto mais respeitado quanto a esposa ou a filha se evidenciem no cortejo, pelo que é posto cuidado especial na indumentária e no arranjo e decoração do burro que as transporta.

Na segunda-feira, por volta das 09h00, junto à Igreja Matriz de Alcochete, inicia-se a romaria a pé à Atalaia. Em 2002 foram cerca de duas centenas as pessoas que percorreram os 6km de distância. À chegada à Atalaia os romeiros dirigem-se à igreja, onde assistem à missa, seguindo-se o almoço e a procissão (à frente da qual vai o filho do festeiro, ladeado pela juíza e o juiz. Incorporam-se o guião do círio e a imagem de Nossa Senhora da Atalaia, escutando-se em fundo o rufar do tambor do "Chininá"). Antes da missa os romeiros entregam ao festeiro as bandeiras arrematadas no ano anterior, pagando o valor da arrematação e recebendo em troca um símbolo (a medalha) que colocam no peito. No período da manhã são também entregues as fogaças a leiloar. As bandeiras novas serão benzidas durante a missa e posteriormente entregues ao festeiro, a fim de integrarem o leilão da tarde. As bandeiras e as medalhas identificam o círio e o seu valor define uma hierarquia no funcionamento da festa. As bandeiras contêm, normalmente, uma representação da Senhora da Atalaia, a identificação da localidade, do ofertante e por vezes também a data e a graça obtida. As medalhas são de três tamanhos (as maiores e mais valiosas apenas exibidas pelo filho do festeiro, juíza e juiz), sendo feitas pela esposa do festeiro com cartão, tecido, papel de alumínio e missangas. Constituem, normalmente, representações de motivos náuticos (barcos sobretudo). De notar que as "fogaças", um bolo típico de Alcochete, são os doces pães desta festa popular. Cada ofertante leva sete fogaças para o leilão realizado à porta da igreja da Atalaia, uma por cada dia da semana e pesando individualmente um quilograma, augurando abundância e afastando infortúnios. As fogaças podem ou não constituir o pagamento de uma promessa.Com esse ritual cumprem-se votos antigos e o arrematante compromete-se a trazer outras tantas fogaças ao leilão do ano seguinte.Comer as fogaças oferecidas ao círio, segundo relatos antigos, torna a pessoa e a colectividade a que pertence indemnes à peste e às pragas. O leilão das bandeiras principia pela mais valiosa, o guião. Os arrematantes ficam na posse das bandeiras durante um ano e o guião é guardado pelo festeiro. No final da tarde de segunda-feira, após o regresso do círio a Alcochete, organiza-se novo desfile do círio no circuito tradicional na zona histórica da vila, montando novamente as senhoras os burros. Os novos arrematantes vão atrás, num ruidoso cortejo automóvel, exibindo as bandeiras que guardarão durante um ano. Os ex-detentores de bandeiras prendem uma medalha ao peito. Na noite desse dia, na Casa do Círio, em Alcochete, realiza-se um beberete oferecido pela juíza, pelo juiz e pelo festeiro do ano seguinte. Na terça-feira há novo almoço na Casa do Círio, seguindo-se, ao final da tarde, o desfile na zona histórica de Alcochete de inúmeros pares de jovens, à frente dos quais seguem o filho do festeiro, a juíza e o juiz, ostentando os seus distintivos. A festa termina com um derradeiro e muito aguardado jantar, novamente na Casa do Círio. Há 35 anos fazia-se a festa com 12 contos, actualmente chega a custar 9.000. O financiamento das despesas resulta apenas da arrematação das bandeiras e das fogaças, à porta da igreja da Atalaia, paga somente no ano seguinte. Assim se preserva a tradição secular do Círio dos Marítimos de Alcochete, que descrevemos apenas sucintamente, cuja continuidade nem sempre tem sido fácil. Respeitar e compreender esta romagem e o seu significado profundo na vida local é o que se pede aos alcochetanos de hoje e do futuro.